A Justiça Federal do ES, por meio de sua Comissão de Enfrentamento e Prevenção do Assédio Moral e Sexual, promoveu na tarde de quarta-feira, 6 de abril, o primeiro Tela Redonda de 2022. A juíza federal Adriana Cruz, da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (SJRJ), trouxe à reflexão o tema: “Cotidiano Judicial – Desafios para o Enfrentamento das Discriminações Proibidas”.

Foi a segunda participação da magistrada no projeto Tela Redonda da Justiça Federal capixaba. A primeira foi em novembro de 2020, em uma edição especial do bate-papo virtual alusiva ao Dia da Consciência Negra e aos dez anos do Estatuto da Igualdade Racial – Lei nº 12.288/2010.

Desta vez, o objetivo de sua fala foi despertar magistrados e servidores para os desafios que enfrentam diariamente, ao serem demandados por pessoas dos mais variados contextos.

“As relações humanas e os conflitos que chegam para nós são nosso instrumento de trabalho no Judiciário. Precisamos olhar para o outro com toda a sua integralidade. Nem todas as pessoas usufruem dos bens da vida ou podem lutar por eles da mesma forma”, alertou a magistrada.

Adriana Cruz lembrou que a sociedade brasileira – por sua própria formação, a partir do tráfico negreiro – é extremamente violenta. “O Estado brasileiro é muito eficiente para os propósitos para os quais ele foi desenhado. Somos violentos, racistas, misóginos. Temos uma sociedade que despreza o feminino”.

Ao tratar sobre as questões de gênero, a juíza federal citou uma pesquisa realizada pela professora Valeska Zanello (UNB), que perguntou a crianças e adultos de todas as classes sociais e formações qual era o pior xingamento para homens e mulheres.

“Para as mulheres, a maioria dos xingamentos eram ‘p…’ ou variações de ‘p’. Para os homens, eram os nomes ligados a homossexualismo”, contou a juíza. “Constatamos que o pior que pode acontecer a uma mulher é viver sua sexualidade como ela quiser. Para os homens, o pior é se identificar com o comportamento feminino”, considerou.

“Apurar o olhar”

Para Adriana Cruz, é preciso apurar o olhar para essas questões. “Quando olhamos para as instituições e vemos predominantemente homens em determinados espaços, precisamos treinar nosso olhar para achar aquilo esquisito. “Quando se coloca a lente de gênero, você nunca mais deixa de ver”.

“Com o racismo não é diferente”, ressalta a palestrante. “E quando entramos num ambiente que sempre frequentamos e passamos a observar que só tem gente branca lá e só pessoas negras estão servindo às mesas?”

Na opinião da magistrada, ter um olhar atento às vulnerabilidades tem muito a ver com o trabalho no Poder Judiciário, porque são questões que geram conflitos na sociedade.

“O que falo aqui se aplica a todas as pessoas, porque todos fomos forjados num caldo racista, misógino, transfóbico, capacitista. Nosso trabalho é nos limpar desse tempero ruim para que a gente não produza as discriminações ruins”, defendeu.

“Abismo”

A magistrada lembrou do Art. 3º da Constituição Federal, que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Argumentou que o pluralismo é contrário à exclusão. “Se tenho dinâmicas excludentes, tenho que parar e repensar os meus caminhos. Existem ferramentas que, de forma concreta, podem fazer com que a nossa atuação no PJ tenha uma dinâmica inclusiva e não reprodutora de violência”, alertou.

De acordo com a juíza, mesmo pessoas que têm seus pedidos julgados procedentes reportam um contato de violência, de desrespeito, de não escuta. Outras até já imaginavam que seria assim. “Há um abismo que separa a pessoa da Justiça”.

Para ela, “ser juiz nada mais é do que um trabalho, com uma série de responsabilidades que outros trabalhos têm”. “O que leva uma instituição a parecer quase que habitando um outro planeta, um outro universo? Tudo na nossa instituição sinaliza nas pessoas que elas não são bem-vindas”, avalia. “Já foi pior no passado, mas é importante que façamos essa autocrítica. Tudo que a gente já fez é nada frente ao que a precisa fazer, para uma instituição que deveria estar pronta para tutelar e resguardar direitos fundamentais”.

Instrumentos

A magistrada, que é membro do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), informa que as questões das vulnerabilidades têm sido muito discutidas, bem como a adoção de protocolos. A adoção de protocolo de julgamento com perspectiva de gênero é, inclusive, recomendação do CNJ.

“A Corte Interamericana adota o protocolo de julgamento com perspectiva de gênero. E o STJ afirmou recentemente que os juízes brasileiros são juízes da Corte Interamericana e essas decisões vinculam juridicamente os juízes em suas decisões”, alerta a magistrada.

Ela cita, ainda, a Resolução 287, que trata dos procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e as resoluções 348 e 366, que estabelecem diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente.

A Cartilha da Ajufe Mulheres (previdenciária) e a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhecendo a aplicação da Lei Maria da Penha para pessoas trans também estão entre os instrumentos citados pela magistrada.

Despertar

“Precisamos acordar de um sono – uma certa letargia – e compreender que por mais que a gente procure prestar um trabalho de excelência, a instituição produz violência a partir da violação de direitos”, concluiu Adriana Cruz.

A mediação do encontro foi feita pela juíza federal Enara de Oliveira Olímpio Ramos Pinto, presidente da Comissão do Assédio, que concluiu: “O reconhecimento é o primeiro passo para uma mudança. Por isso, temos buscado esse caminho do diálogo, do debate, da conscientização, para trazer à luz essas questões que foram naturalizadas”.

Libras

E foi pensando na inclusão das pessoas em situação de vulnerabilidade que o Tela Redonda do dia 6/4 contou, pela primeira vez, com tradução simultânea em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Atuou como intérprete a servidora Monise Meira Campozana, do Núcleo de Contadoria da Seção Judiciária.

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