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Tribunais de todo o país estão formando comissões de magistrados para enviar ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sugestões de como aplicar a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que cria a figura do Juiz das Garantias e cujas regras passariam a valer no próximo dia 23 de janeiro (o prazo foi estendido para 180 dias pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira, 15/1).

O TRF da 2ª Região instituiu no último dia 8 a comissão que vai apresentar as sugestões para aplicação da Lei na Justiça Federal do Espírito Santo. Presidida pelo Fernando Cesar Baptista de Mattos, a comissão é formada também pelos juízes federais Américo Bedê Freire Junior e André Luiz Martins da Silva.

No mesmo dia em que foi criada a comissão capixaba, Américo Bedê – que é titular da 2ª Vara Federal Criminal de Vitória e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais – concedeu entrevista sobre o tema à Rádio CBN Vitória, respondendo a perguntas dos ouvintes.

Para o magistrado, a lei não viola a Constituição e pode, sim, ajudar a evitar a condenação de inocentes, mas a tendência natural é aumentar o tempo de duração dos processos.

Confira a entrevista:

– Qual a função do juiz de garantias? Ele vai garantir o quê?

Dr Bedê

Juiz federal Américo Bedê Freire Junior

No nosso Código de Processo Penal, a questão central do juiz de garantias é, inicialmente, definir o que você espera de um processo penal.

Existe uma corrente ultrapassada, que trata o processo penal com um sistema inquisitivo, em que se pretendia que o réu não tivesse direito fundamental nenhum, sendo possível que a mesma pessoa que acusava julgasse o réu – um sistema bem primitivo.

E aí nós chegamos a um sistema acusatório, que é o grande debate do juiz de garantias. Quando você trabalha com processo penal, você quer a condenação de culpados e a absorvição de inocentes. A ideia do juiz de garantia é exclusivamente evitar a condenação de inocentes. É uma ideia que, para alguns, vem do Chile, só que mais uma vez o Brasil copia o modelo pela metade. A ideia daqueles que defenderam a lei, basicamente, é o seguinte: o juiz que atua na fase de investigação ficaria contaminado para atuar no processo. Então, esse juiz que acompanhou o
inquérito deveria ser substituído por outro juiz durante o processo.

Há uma grande discussão – por exemplo, o ministro Ayres Britto defendeu, com todo respeito, a inconstitucionalidade – alegando que a Constituição fala em único juiz natural, que se criou dois juízes naturais com a figura do juiz de garantias. A maior parte da doutrina entende que inconstitucional não é. Diretamente, violar a Constituição, não viola.

Uma pergunta importante é sobre a conveniência. Era realmente necessária essa figura? A tendência natural é atrasar mais os processos. Antes, um juiz que já atuava na fase de inquérito, quando chegava no processo ele já conhecia todo o caminho. O novo juiz vai ter que reestudar e a lei determina que ele, de ofício, aprecie as medidas do juiz de garantias. Então, do ponto de vista da duração razoável, é uma medida que vai dificultar, sim.

E a lei tem uma contradição interna. Porque se o fundamento é de que aquele que atua no inquérito fica contaminado para o processo, quem deveria receber a denúncia não seria o juiz de garantias, mas o outro juiz. E a lei determina que é o próprio juiz de garantias receba a denúncia. A ideia é um juiz para atuar especificamente na fase da investigação, só que a lei foi além. Esse juiz atua na fase de investigação até o recebimento da denúncia.

E a lei ainda trouxe uma outra polêmica: até que momento vai a atuação desse juiz, se vai até a execução sumária ou não. A lei já está sendo questionada no Supremo, porque o prazo de vacacio legis (período que decorre entre o dia da publicação de uma lei e o dia em que ela entra em vigor) é muito curto.

E, entre várias polêmicas, a gente pode citar, por exemplo, se ela vai se aplicar a todos os processos de modo imediato.

Uma parte da doutrina acha que a lei é processual e, como tal, tem que ser aplicada imediatamente e, portanto, no dia que entrar em vigor essa lei, todos os juízes que atuaram nas fases de investigação ficariam suspeitos de atuar no processo. E há uma outra corrente que sustenta que não existe causa de impedimento superveniente. Não existia a figura do juiz de garantias e, consequentemente, eu só posso falar em impedimento após a efetiva implementação dessa figura pelos tribunais.

Então, é um tema que traz muita polêmica. Mas me parece, e isso precisa ser dito à população, que é um motivo nobre evitar condenar inocentes, você precisa proteger, e o processo penal tem uma missão de proteger e evitar abusos do Estado, evitar condenação de pessoas inocentes. Mas é, digamos assim, uma contradição do que foi vendido com a lógica do pacote anticrime, que seria para endurecer a legislação, que o direito penal seria mais efetivo, que a população iria ver de fato a justiça penal funcionar de modo mais célere, mais exemplar.

Criam-se, na prática, quase que duas instâncias dentro do primeiro grau. Porque o outro juiz vai poder rever tudo o que o juiz de garantia fez. Então, tudo aquilo que já foi sustentado na fase de investigação, possivelmente será rediscutido, terá nova apreciação judicial durante o processo. Então, a discussão é se isso é conveniente ou não, se é útil ou não.

Inconstitucional, parece-me que não é. De fato, o sistema do júri prevê um sistema bifásico, com mais de um juiz apreciando as circunstâncias. Mas que é preciso um tempo maior. Há um relativo consenso de que a justiça não tem estrutura para que em tão curto espaço de tempo, e com tantas polêmicas que ainda existem sobre essa figura, implementar isso agora para o dia 23 de janeiro.

O Poder Judiciário está aberto a ouvir várias demandas, várias opiniões sobre isso. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) criou comissão, o CJF (Conselho da Justiça Federal) criou comissões, os tribunais criaram comissões. É um tema que vai alterar substancialmente a nossa prática.

Não gosto daqueles que argumentam que só agora o juiz é imparcial, só agora tem imparcialidade, porque, se eu levar esse argumento ao fim e ao cabo, significa que todas as decisões judiciais antes do juiz de garantias eram inconstitucionais, porque a imparcialidade é um requisito da jurisdição. Não me parece que houve um grande avanço nesse tema. Mas é uma opção. É uma possibilidade, sim.

Vamos ver, no futuro, como a prática vai interpretar isso. Mas, respondendo especificamente ao ouvinte, o que o juiz de garantias faz, a expressão é garantir os direitos fundamentais dos investigados. O juiz de garantias está para conter abusos do Ministério Público e da Polícia na fase da investigação, evitar recebimento de denúncias infundadas, fazer audiências de custódia, trancar inquéritos que não tenham fundamento para sua instauração. A lei coloca 11 atribuições, 11 funções para o juiz de garantias, durante esta fase preliminar, antes que tenha ação penal, e até mesmo durante a ação, já que ele recebe a denúncia, já que ele vai, para muitos, até a fase de absolvição sumária, deixando o segundo juiz só para instrução e julgamento.

– E nos locais onde só há um juiz?

A lei manda fazer rodízio. E os tribunais estão estudando como esse rodízio seria implementado, com a criação de varas regionais de juiz de garantias, ou fazendo com que a comarca mais próxima funcione como juiz de garantias da outra comarca. Na prática, vai haver uma troca de comarca. Porque se você não aplicar a regionalização, se o inquérito estiver na comarca x, o processo vai ter que ir para a comarca y. As testemunhas, a sociedade que sofreu com o crime, não será a mesma.

É um problema, sem dúvida, essa questão em relação a locais únicos, é um problema essa questão nos tribunais. Se o pleno do Supremo atua no inquérito numa questão, como é que fica? A lei não fez ressalva do Supremo, não fez ressalva dos tribunais. Há uma discussão de interpretação, de que isto não se aplica aos tribunais, mas a lei não fez essa ressalva, e aí só reforça a ideia de que não é uma garantia de imparcialidade total, porque se fosse não poderia excluir o Supremo dessa questão, porque o Supremo é a última instância. Então todos os tribunais, não apenas o primeiro grau, deveriam estar vinculados à figura do juiz de garantias. Quem não tem juiz de garantias expressamente na lei: as causas de menor potencial ofensivo, os crimes de juizado. Estes não vão para o juiz de garantias, porque é só uma investigação preliminar; não inquérito, é só um termo circunstanciado. Por isso a própria lei fez a ressalva. Mas, tirando o juizado, expressamente todos os demais crimes precisariam observar essa figura e aí tem o debate, as outras instâncias, etc, como fazer isso.

O Brasil é continental. Você tem varas na Justiça Federal, por exemplo, como as do Paraná, que a próxima vara mais próxima fica a 50 km de distância. Não é tão simples. Temos várias comarcas, vários inquéritos que ainda não são informatizados. Não é tão simples o trâmite. Por isso que se fala que a medida precisa, sim, de um prazo muito maior do que o que foi dado, para que ela possa ter, de fato, a sua implementação.

– O senhor citou o Chile como um dos países que usa a figura do juiz de garantias… Tem Alemanha, Argentina, Itália – onde teve a operação Mãos Limpas, que inspirou a operação Lava Jato… Essa operação já teve atuação do juiz de garantias? Como é que ficaria a Lava Jato?

Veja, o modelo do juiz de garantias que o Brasil copiou, mais ou menos, foi o do Chile. O modelo italiano e o modelo alemão são diferentes, porque partem da ideia de que a própria investigação é conduzida pelo juiz. É diferente. Aqui a investigação vai continuar sendo conduzida pela Polícia. O juiz não vai fazer a investigação. O juiz de garantias é inerte. A lei fala expressamente que o objetivo do juiz de garantias é evitar a punição de inocentes. Se tiver uma suspeita, por exemplo, que a Polícia esqueceu ou que o Ministério Público esqueceu de investigar alguém ou uma prova importante, esse juiz de garantia não vai poder conseguir essa prova em prol da sociedade.

A lei coloca que o juiz de garantia só pode atuar em benefício do investigado. E sempre depois de provocado. Ele não vai poder atuar de ofício. Esse é outro problema. A lei tirou, e aí vem a discussão grande de poderes instrutórios do juiz, também, no processo, a lei agora proíbe que o juiz prenda alguém de ofício. Tem que ter sempre pedido do MP ou da Polícia.

Então, a ideia do pacote anticrime é um pouco diferente do que aquilo que o Congresso aprovou, de fato. A ideia era de ampliar a efetividade da jurisdição criminal no combate a crimes, permitindo e viabilizando que determinados entraves do sistema não continuassem servindo de empecilho. E na prática se criaram novos entraves. Na prática o sistema acabou se tornando muito mais complexo desse ponto de vista. Pode, sim, ter a vantagem de evitar, de algum modo, a condenação de inocentes. Mas, então, o modelo italiano é diferente do nosso. Não é propriamente um modelo de juiz de garantias, porque lá, inclusive, o Ministério Público e a magistratura é o mesmo concurso. Só lá dentro que há divisão. Não há um concurso para o Ministério Público e outro para a magistratura. É tudo junto. Tudo a mesma instituição. Então são modelos diferentes.

– A correta a aplicação da lei, inclusive penal, não é atribuição do Ministério Público?

Na verdade, o Ministério Público é parte no processo penal. Qual é a lógica do processo penal? O MP é uma parte impacial, que deve acusar culpados, mas quem decide se alguém é culpado ou inocente não é o promotor, é o juiz. O promotor pode entender, por exemplo, que aquela
pessoa é culpada e o juiz entender de modo diferente.

Não é uma questão aí de hierarquia, é de separação de funções, qual é o papel de cada um. Então, a definição no processo final, se é culpado ou inocente, se a polícia agiu de modo correto, se o próprio MP agiu de modo correto, é do Poder Judiciário. Ele é o último que vai dizer se foi
ou não observada a lei. No caso do juiz de garantias também, mas veja a diferença. Antes, um juiz que atuasse no inquérito, como ele próprio atuava no processo, dificilmente ele ia falar que ele no inquérito atuou de modo errado. Porque ele próprio estaria reconhecendo um erro dele. Poderia acontecer, deveria acontecer, mas não é regra. Com a figura do juiz de garantia, como agora é outro juiz, ele pode dizer: “olha, esse juiz definiu uma medida de busca, mas não havia elementos para busca na época. Deferiu uma interceptação telefônica, mas não havia elementos para interceptação telefônica. Por isso que se fala que, antigamente, era só o tribunal que poderia rever a decisão, hoje não, dentro da própria instância você cria uma segunda possibilidade para defesa. Você dificulta a condenação de inocente. Esse é o principal objetivo
e é a questão correta da lei.

– Como ficou a regulamentação do CNJ a esse respeito?

Ainda não ficou. O CNJ está ouvindo, colhendo sugestões, ainda vai regulamentar, e o Supremo tem Adins (Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade) já propostas por várias associações, inclusive com pedido específico apenas de prorrogação do prazo, para que, de fato, o Poder Judiciário possa se preparar para cumprir a lei. Porque a lei deixou várias interpretações, várias lacunas. Tudo isso e a estruturação do Poder Judiciário para mais essa figura demandam um tempo maior do que 30 dias, no recesso de fim de ano.

– Vai haver algum aumento de custo, salários, novos juízes? 

Em tese, não. Em tese, a estrutura vai ser a estrutura atual do Poder Judiciário. Vai ter um aumento de trabalho, de reorganizar a estrutura administrativa do Poder Judiciário, mas a lei não trouxe nenhuma gratificação, nenhum a criação de cargos novos. Trouxe apenas novas obrigações e um repaginamento da estrutura do processo penal.

– Essa lei retroage a processos que foram julgados? Na operação Lava Jato, por exemplo, alguns processos poderão ser revistos?

Veja, o que já foi julgado, com certeza não. A lei processual não retroage. Diferente da lei penal, mais benéfica, a lei processual não retroage para atingir a coisa julgada. Mas aquilo que está pendente de julgamento, aí vai ter uma discussão muito grande, porque para alguns ela é lei processual, tem que aplicar imediatamente e, portanto, os juízes que estão atuando agora na Lava Jato vão ter que ser alterados, quando for o processo, e para outros não, porque é uma regra nova de impedimento.

A figura do juiz de garantias só existe a partir da criação e da implementação pelos tribunais. Agora, quando alguém atuar como juiz de garantias, a partir dessa data, nas novas ações, essa pessoa não poderá atuar. A lei não poderia aplicar de modo imediato. Isso implicaria uma troca de acervo entre juízes, implicaria a criação de causas supervenientes de impedimento e suspeição, que seriam incompatíveis com o processo democrático.