Cópia De Tela Redonda (3)

Uma pesquisa inédita baseada nos dados do Sistema Único de Saúde (SUS) mostrou que a cada uma hora uma pessoa da comunidade LGBT é agredida no Brasil. A Corte Interamericana de Direitos Humanos constatou que 8.027 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil entre 1963 e 2018 em razão de orientação sexual ou identidade de gênero. A expectativa de vida da pessoa trans no Brasil é de 35 anos. O ciclo de exclusão das pessoas LGBTs começa na família, passa pela Educação, pelo Trabalho, pela Saúde e pela Política.

Esses e outros dados alarmantes foram compartilhados pelo advogado e professor Murilo Siqueira Comério no bate-papo virtual sobre o tema “A tutela antidiscriminatória das pessoas LGBTQIA+”, realizado na Justiça Federal do Espírito Santo na tarde de terça-feira, 17/8.

Promovido pela Comissão de Enfrentamento e Prevenção ao Assédio da JFES, o Tela Redonda teve como mediadora a presidente da Comissão, juíza federal Enara de Oliveira Olímpio Ramos Pinto.

A magistrada abriu o evento salientando que a comissão – instituída em atendimento à Resolução nº 351/2020 do Conselho Nacional da Justiça (CNJ) – vem realizando na JF capixaba debates sobre conceitos de assédio, justiça restaurativa, a importância de relações humanizadas e democráticas no ambiente de trabalho, dentro de “uma pauta antidiscriminatória e mais inclusiva que deve fundamentar uma sociedade democrática, baseada no pluralismo de nossa República”.

Direito de ser

“Em um contexto social marcado por preconceito e intolerância, o Judiciário tem tido papel muito importante na proteção da dignidade e da liberdade das pessoas LGBTQIA+”, ressaltou a juíza, citando avanços relacionados à união homoafetiva, ao uso do nome social e à criminalização da homofobia.

“Mas como estamos tratando e vivenciando quando essas questões surgem na própria Justiça, fora dos processos, em âmbito administrativo, com nossos colegas, com jurisdicionados que chegam aos nossos balcões?”, questionou Enara Olímpio.

“Para que possamos nos familiarizar e, dessa forma, lidar cada vez melhor com toda a diversidade, foi que surgiu a ideia de convidar o advogado e professor Murilo Siqueira Comério para falar sobre o tema”.

Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra/Portugal (FDUC), graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitoria (FDV), com formação complementar na Universidad de Castilla-La Mancha/Espanha (UCLM), Murilo é autor do livro “A tutela antidiscriminatória dos(as) trabalhadores(as) trans: o direito à identidade de gênero no contexto laboral” (2019). Recebeu premiação internacional pela Direção Geral do Ensino Superior de Portugal (2018).

Do livro de seu convidado, a juíza federal Enara Olímpio citou, com suas palavras, algo que muito a impactou: “Ao tratarmos dos direitos da comunidade LGBTQIA+ estamos lidando com o direito de existir, com a possibilidade de negação do indivíduo enquanto sujeito”.

Falar é imprescindível

Murilo agradeceu a oportunidade de tratar, na Justiça Federal, sobre um tema tão “importante, sensível, atemporal e histórico.” Para ele, falar sobre os direitos das pessoas LGBTQI+ é imprescindível, “ainda mais num momento de fake news e discursos de ódio, que potencializam a marginalização e a exclusão social.”

O professor iniciou explicando que os caracteres da sigla LGBTQIA+ designam a comunidade de pessoas com orientação sexual e identidade de gênero que divergem da heterossexual/cisgênero. O principal objetivo dela é unir as pessoas que fazem parte da comunidade para que se sintam reconhecidas e representadas.

A sigla tem duas partes. A primeira, LGB se refere à orientação sexual do indivíduo, que pode ser:

L: lésbica, mulher que se identifica como mulher e tem preferências sexuais por outras mulheres.

G: gays, homens que se identificam como homem e têm preferências sexuais por outros homens.

B: bissexuais, que têm preferências sexuais por ambos os gêneros.

A segunda parte, TQI+, diz respeito ao gênero:

T: transexuais, travestis e transgêneros, que são pessoas que não se identificam com os gêneros masculino ou feminino atribuídos no nascimento com base nos órgãos sexuais.

Q: queer, é usado para representar as pessoas que não se identificam com padrões impostos pela sociedade e transitam entre os gêneros, sem concordar com tais rótulos, ou que não saibam definir seu gênero/orientação sexual.

I: intersexuais, que apresentam variações em cromossomos ou órgãos genitais que não permitem que a pessoa seja distintamente identificada como masculino ou feminino. Antes, eram chamadas de hermafroditas.

+: todas as outras letrinhas do LGBTT2QQIAAP, que não para de crescer — os “as”, por exemplo, significam assexuais (pessoas que não sentem atração sexual) e aliados (pessoas que se consideram parceiras da comunidade).

Murilo informou que a sigla, inicialmente formada pelas letras LGBT, começou a ser usada mais fortemente a partir de uma rebelião dessa comunidade contra uma invasão da polícia, de cunho humilhante, realizada num bar LGBT em Nova York, nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969 – a Rebelião de Stonewall.

“O episódio serviu de base para o movimento mundial que promove a inclusão dessas pessoas, de forma que elas se sintam cada vez mais livres para expor a sua sexualidade, a sua identidade de gênero e não obrigadas a pertencer a esse universo hétero normativo”, ressaltou.

Matriz heterossexual

Antes de chegar no direito, Murilo precisou compreender “o que está enraizado na sociedade”. “No momento do nascimento somos enquadrados em ser homem e ser mulher, com base no órgão sexual, numa verificação fisiológica, biológica e objetiva. Mas é possível que a pessoa nasça com o sexo masculino e, no decorrer da vida, com o amadurecimento, ela se identifique com o sexo feminino. São as pessoas trans. Mas também há aquelas que não se identificam nem com um nem com outro. Pessoas não binárias. A partir da matriz heterossexual é que surge o preconceito, por motivos políticos, históricos, culturais e religiosos”, destacou o advogado.

Homotransfobia

Falando sobre homotransfobia – discriminação, restrição ou ofensas, com o objetivo de anular ou prejudicar a igualdade das pessoas LGBTQIA+ perante a lei – o palestrante ressaltou que quando alguém agride um casal homossexual pelo simples fato de ser ou de caminhar de mãos dadas está impedindo a liberdade e a igualdade das pessoas. “Gestores de escola que se omitem na proteção de adolescente contra o bullying homofóbico ou quando a pessoa travesti tem o trabalho negado por não se vestir de acordo com seu sexo biológico, também”, acrescentou.

“A homotransfobia é uma agressão ao que a pessoa verdadeiramente é. É privá-la do direito constitucional de sua autodeterminação. É violentá-la de uma maneira profunda e grave. Basta ver que o número de suicídios dessas pessoas é muito alto se comparado a pessoas cis gêneros” (indivíduos que se identificam, em todos os aspectos, com o seu ‘gênero de nascença’).

Tutela protetiva

Murilo considera a criminalização da homotransfobia como um marco muito importante no Brasil, além de conquistas como a união estável e o casamento. Mas lamenta que tudo isso ainda dependa do Supremo Tribunal Federal (STF). “Nosso Congresso não legisla sobre o assunto. Depende do STF a interpretação de normas escassas e promover essa tutela antidiscriminatória.”

Concorda com o STF ao enquadrar a homofobia na lei de racismo, já que “a conduta homotransfóbica resulta de uma manifestação de poder, com o objetivo de justificar a desigualdade, de controlar aqueles que integram grupo vulnerável, por não pertencer a uma hegemonia, serem ‘estranhas’, diferentes, rebaixadas a marginais, perversas. É uma interpretação razoável, uma vitória muito grande, de caráter protetivo.”

Respeito no trabalho

Na parte laboral, Murilo chama atenção para a necessidade de estamos atentos a alguns detalhes, como se estamos publicando fotos com poucas mulheres, nenhum homem negro, ou se o nome social está sendo respeitado. “Isso vai formando um processo em cadeia de respeito”, assevera.

“Na tese de mestrado em Portugal, falei na palavra tolerância (muito usada no Brasil) e o professor disse que nesse assunto não se fala em tolerância. Fala-se em respeito. A gente não tem que tolerar as pessoas. Tem que respeitar”, contou.

Comentou, ainda, que no primeiro evento que realizou, em 2019, para apresentar seu livro, uma pessoa levantou a mão e disse que trabalhou numa empresa em que o gestor afirmou que não era para contratar pessoas homossexuais.

Casos como esses devem, na opinião do escritor, ser observados na compliance trabalhista, inclusive com canais de recebimento de denúncias anônimas. “O empregador tem o dever de manter o ambiente de trabalho equilibrado. E já está provado que o ambiente é mais produtivo e mais alegre quando a pessoa se sente inserida na organização e não precisa manter uma ‘vida paralela’.”

Outra forma interessante de evitar discriminação no trabalho, na opinião de Murilo, seria a “contratação às cegas”, um modelo menos subjetivo de recrutamento e seleção que consiste em analisar apenas as competências dos candidatos nas primeiras etapas, sem expor nome, gênero, idade, localização, instituição de ensino onde o candidato se formou e o nome de empresas em que trabalhou anteriormente. É um método que vem sendo adotado em algumas empresas como forma de promover a diversidade.

“O Brasil, além de ser o país que mais mata trans, é o que menos dá emprego a essas pessoas”, informou. Disse ainda que pesquisas revelam que na pandemia as pessoas trans se sentiram mais protegidas trabalhando em casa, mais felizes de estarem longe do ambiente de trabalho. Por outro lado, ficaram mais suscetíveis a violência doméstica.

De acordo com o professor, a discriminação às pessoas LGBTQIA+ pode configurar assédio moral no trabalho. Há que se atentar aos danos causados, atos violadores dos direitos de personalidade, perseguição, agressões físicas, verbais e atos abusivos.

Novas reflexões

A juíza federal Enara Olímpio encerrou o evento declarando o quanto é importante esclarecer conceitos e conhecer os dados alarmantes para se dar conta de como a gente tem que mudar e respeitar a diversidade.

“Tudo que queremos é possibilitar que as pessoas sejam verdadeiras em sua jornada”, finalizou a presidente da Comissão de Prevenção ao Assédio na JFES.

O evento contou com a participação de servidores, magistrados, estagiários e advogados. A coordenadora do laboratório de Inovação da Seccional – Inovares – juíza federal Cristiane Conde Chmatalik também estava presente.

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