tela gênero

A Justiça Federal, por meio de sua Comissão de Enfrentamento e Prevenção ao Assédio, realizou na tarde de quarta-feira, 22/09, o Tela Redonda “Assédio moral e sexual e questão de gênero”, com a procuradora do trabalho Keley Kristiane Vago Cristo.

Mediado pela juíza federal Enara de Oliveira Olímpio, presidente da comissão, o bate-papo virtual abordou as principais formas de violências contra as mulheres no trabalho (assédio moral e sexual) e suas interfaces com a discriminação de gênero e a divisão sexual do trabalho.

Mestre em Política Social pela Ufes e especialista em Direito do Trabalho pelas Universidades de Bolonha e Castilla Lá Mancha, Keley Cristo é representante Regional na Coordigualdade do MPT (Coordenadoria de Promoção da Igualdade e combate à discriminação) e presidente da Comissão Regional de Prevenção ao Assédio Moral, ao Assédio Sexual e Discriminação na Procuradoria Regional do Trabalho no Espírito Santo PRT 17.

Divisão sexual do trabalho

A procuradora fez um resgate histórico sobre as mulheres no trabalho, desde a Antiguidade, chamando atenção para uma divisão sexual do trabalho que foi sendo criada. A base dessa divisão, segundo os estudos apresentados, está na distinção entre trabalho reprodutivo, associado à mulher, e produtivo, associado ao homem.

De acordo com a exposição, “a distinção entre trabalho reprodutivo e produtivo ocorre dentro de um modelo binário de gênero, socialmente construído, em que o espaço público é historicamente associado ao homem e o espaço privado destinado à mulher – trabalho doméstico, geração, criação e educação dos filhos e cuidados com familiares.”

Feminismo e sororidade

Keley Cristo também falou sobre feminismo – movimento político, social e filosófico que luta pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. O movimento passou por duas ondas. A primeira foi no século XIX, com a busca pela igualdade de direitos civis e direito ao voto, e a segunda onda, entre metade dos anos 60 e começo dos anos 70, quando se tratou das relações sociais e do trabalho e houve a revolução sexual, a partir do advento da pílula anticoncepcional, na qual a mulher passou a lutar por seus direitos sexuais e reprodutivos.

A convidada mencionou hoje existem feminismos plurais – “não somos todas iguais” – e falou sobre interseccionalidade – um conceito sociológico que trata das interações entre gênero, raça e classe social e que, dependendo da raça e da classe social, a discriminação de gênero é vivenciada de maneira diferente.

“Se sou uma mulher negra que mora na periferia, em certas condições, não tenho a mesma situação da mulher branca, que teve acesso à instrução. É preciso ter empatia e comprometimento com as lutas das demais mulheres que não estão no nosso momento”, pontua.

Nesse contexto, Keley Cristo chamou a atenção para a questão da sororidade. “Sororidade vem de soro, de irmão. É irmandade. O que se faz com outra mulher diz respeito a mim também”. Lembrou ainda do #Me Too, movimento contra o abuso sexual originado em 2017 nos EUA, que mobilizou pessoas a quebrarem o silêncio contra abusadores.

Normativos e dados

A procuradora do trabalho citou marcos normativos mundiais que tratam dos direitos das mulheres, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) em 1948, a Convenção Interamericana sobre a concessão dos direitos civis à mulher em 1948, a convenção sobre os direitos políticos da mulher, a Convenção da OIT nº 100, de 1951, que dispõe sobre a igualdade de remuneração entre homens e mulheres.

Mostrou dados do IBGE que mostram que, estruturalmente, homens participam mais do mercado de trabalho que as mulheres (homens 73,7% e mulheres 54,5%). No mesmo ano, a diferença salarial foi, em média, de 22% a mais para os homens. E essa diferença aumenta à medida que a mulher envelhece, chegando a 36% na faixa etária de 60 anos ou mais.

Os dados também mostram, pelo segundo ano seguido, diminuiu a presença feminina em cargos de direção e gerência.

Mulheres, violência e assédio no trabalho

Levantamento produzido pelo instituto Patrícia Galvão, em 2020, na pesquisa “Percepções sobre a violência e o assédio contra mulheres no trabalho”, revela que 76% das mulheres já foram vítimas de violência no trabalho (assédio moral, assédio sexual e discriminação). Quatro em cada dez foram alvos de gritos, xingamentos, insinuações sexuais ou convites indesejáveis para sair, feitos por chefes ou colegas homens.

Teto de vidro

A palestrante comentou sobre o fenômeno denominado “teto de vidro”, que registra a forte discriminação que as mulheres sofrem em relação a oportunidades iguais de trabalho e traz à tona as barreiras invisíveis enfrentadas pelas mulheres advindas da cultura ou de preconceitos inconscientes.

“Embora as mulheres possam ter a mesma formação ou disponibilidade dos homens para se dedicarem ao trabalho, a carreira delas é cercada por preconceitos, como a difícil tarefa de conciliar a vida familiar e profissional ou cercada de atribuição de qualidades profissionais vinculadas a características socialmente construídas em torno da mulher (fragilidade, instabilidade, insegurança, dentre outras).”

Em comparação com os colegas homens, as mulheres têm carreiras mais tardias e passam maiores dificuldades para alcançar postos de destaque nas empresas.

“É difícil entrar no mercado de trabalho, se manter e evoluir. A maternidade é vista como um impeditivo e uma função exclusivamente feminina. Deve haver um compartilhamento entre homens e mulheres no trabalho reprodutivo. Se ele for encampado pelo homem a gente tem a possibilidade de igualdade real”, ressalta a procuradora.

Processo cultural patriarcal

“A mulher está num processo de absoluta desvantagem, mas não é tão óbvia assim. É um processo cultural muito forte, que nos estrutura enquanto sociedade. A reprodução desse processo patriarcal educa nosso olhar para que a gente invisibilize situações de violência e de desigualdade”.

“Nós somos colocados em esquemas inconscientes de percepção e apreciação. Nossa cultura sob o ponto de vista direto e indireto tem um olhar patriarcal, em que a violência é naturalizada. Sobretudo a violência simbólica. A gente não consegue enxergar certos tipos de assédio”.

Desamparo aprendido

Keley Cristo falou ainda sobre a síndrome do desamparo aprendido, que é   “quando o abuso de torna um hábito”. “Cientificamente é reconhecido que a repetição da violência faz com que a vítima não consiga reagir. Esta síndrome pode explicar a razão pela qual a vítima nem sempre procura a polícia ou órgãos de apoio.”

Empoderamento e machismo

E convidada explicou que empoderamento é a tomada de consciência da opressão sofrida e a consequente aquisição de poder para combater a desigualdade e a discriminação.

Disse, ainda, que antes de falar de assédio é importante ter clareza do que é o machismo. “Não é algo que está nos homens. É um discurso e nós mulheres também aderimos, também nos identificamos com esses papeis. Não percebemos que fazemos o que fazemos, que nos colocamos nesses lugares”.

“De tanto sofrer assédio, desqualificação, a gente acaba acreditando nele e reproduz. A gente vai criar nossos filhos, vai trazer para a realidade social a mesma situação e vai perpetuar.”

Para finalizar, apresentou uma pirâmide ilustrando como se dá a cultura da violência de gênero (veja abaixo). “Uma cultura que vai gestando a morte. Quando a gente previne assédio moral, sexual, discriminação, a gente previne que essa mulher tenha esse desamparo aprendido e se submeta a essas condições”.

E convocou a todos e todas para, “através da nossa fala, da nossa colocação, ampliar a consciência”. Elogiou a iniciativa da Justiça Federal em trazer o tema da discriminação de gênero para debate. “A gente precisa trocar, ouvir a outra, diz respeito à nossa vida, a gente pode ampliar esse olhar. Não só na semana do Dia da Mulher.”

Pertencimento

A presidente da Comissão de Enfrentamento e Prevenção a Assédio na JFES, juíza federal Enara Olímpio, agradeceu à procuradora pela fala, “muito profunda e importante”. “A gente vive realmente uma realidade de desigualdade e sub-representação, uma cultura que torna isso natural. Precisamos interromper esse processo na criação dos nossos filhos, e se empoderar. A mulher acha que não deve ocupar determinados espaços, tem receio, não tem a sensação de pertencimento, de ter direito àqueles espaços de poder. A gente, arriscando, vai contra uma índole pessoal para que a mulher se sinta representada, se veja, se espelhe. Precisamos das mulheres irmanadas, para mudar esse estado de violência.”

A magistrada deixou um convite para que a procuradora do trabalho volte, para outro Tela Redonda, desta vez com os exemplos concretos de situações discriminatórias que nos passam batidas, como se fossem naturais.

Encantada

A procuradora da República, Elisandra de Oliveira Olímpio, Presidente da Comissão de Gênero e Raça no Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo, presente ao bate-papo virtual, também parabenizou a JFES pela iniciativa.

“Fiquei encantada com a exposição, muito impactada com seus exemplos. A gente toma consciência de que tudo isso é uma rede, começa com primeiras piadinhas, comentários, que podem chegar a um feminicídio. É uma cultura de violência, é uma cultura que pode culminar com estupro e de feminicídio”, declarou, propondo, inclusive, a realização de um evento conjunto entre a JFES e o MPF/ES, sobre o tema.

Tela Redonda

O Tela Redonda é aberto a qualquer pessoa. Fique atento à programação, sempre divulgada na página da Justiça Federal na internet e também em seus perfis oficiais nas redes sociais (Twitter e Instagram).